quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

 O finado que não é defunto


Quando minha mãe morreu, todas as pessoas saindo para suas casas, após deixa-la em sua definitiva morada, eu fui talvez o último, e quando dei as costas, notei pela primeira vez que havia ainda o cordão me prendendo a ela, e senti o mesmo arrebentando, com um novo mundo surgindo na minha frente, sem mais a sua proteção. 

Antes, o falecimento de um amigo fraterno, daqueles que a gente considera um bom irmão, me deixara essa sensação de rompimento definitivo. Ao acompanhar o seu enterro, imaginava que eu iria viver como se houvesse, a partir dali, um mundo diferente sem ele. E pensei na inversão dos lugares, como estariam as pessoas reagindo com a minha morte, como tudo ficaria sem mim. 

Nada mudou entretanto, nem com a morte dele e nem com a de minha mãe. O mundo permaneceu cruel para uns, generoso para outros, cada um vivendo a sua parte de acordo com o resultado de suas ações. 

Eu não. Já nesse limiar de vida, aqueles eventos viriam a me incentivar um comportamento talvez mais egoísta, na medida que passei entender que precisava viver a minha vida. E tinha uma maneira curiosa de ver o mundo como se vivo eu não estivesse. 

Começou quando estive a um fio de apenas 5% de abertura da veia principal do coração, em que um stent coronário precisou ser implantado, fazendo um bueiro para passagem do sangue que me manterá vivo até não sei quando. Ora, se a sorte não me tivesse sido favorável, entraria na conta dos infartos fulminantes que acometem, ainda hoje, os sedentários e insaciáveis de churrasco e cerveja.  

Mas estou aqui, e meus alfarrábios ainda não foram para o fogo numa queima de arquivo que eu mesmo pretendo fazer. E não só de livros, a maioria que sequer os li, mas de um acervo guardado com coisas que escrevi e que foram publicadas, que estaria ao vento não tivesse guardado em recortes, quase todos. 

Assim me consolo, ficando calado para não querer ser ouvido, e poucas vezes percebi que seria diferente se realmente já estivesse no andar de cima, mesmo em plena era do whatsappinstagram e facebook, que frequento e me comunico constantemente.  

E quando penso que ainda estaria vivo, percebo que, na verdade estou cada vez mais morto. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário